Boi das cinco

Éramos todos à solta nos quintais daqueles anos 50, em Capanema. Não que os relógios fossem relevantes, havia no entanto, a hora do café com pão, a mesa posta, a sesta sagrada dos mais velhos, o banho de igarapé. E havia a hora do trem, no fim da tarde, trazendo a única rês a ser abatida para abastecer a cidade que o mesmo bando de meninos curiosos acompanhava desde o desembarque. O animal era amarrado a duas cordas, esticadas para um lado ou outro, conforme a necessidade, na condução do condenado, nem sempre dócil, pelas ruas de areia.
O Curro municipal era uma construção antiga. O telhado alto,    
o curral de madeira sobre o piso  encardido de sangue e desenhado nas falhas do cimento. E a gente podia assistir bem de perto o golpe mortal que fazia jorrar do pescoço a torneira jugular correndo para a vala e dali para a terra vizinha onde outros bichos iam ciscar. E era ali que os homens abriam e dividiam a carne em comercio.
Como era violenta a natureza daqueles dias. Como era comum procurar o melhor lugar na plateia daquele espetáculo cru e
cotidiano. Na casa, entre orações e agradecimentos, devorava o cozido saboroso posto à mesa farta da infância.
                                                               
                                                                  Emmanuel Nassar

Instalação de uma bandeira


A vinte mil léguas

Meus olhos  passeiam pela vida submarina e a rotina se altera quando identifico o Nautilus, de Vinte Mil Léguas Submarinas. O engenho de Julio Verne tem cerca de 60cm de envergadura e atraves de suas pequenas janelas vejo que carrega um grupo de passageiros. Parece um brinquedo mas se comporta como um peixe escorregadio, vivo e arisco. 
E quando tento toca-lo, serpenteia em fuga. 
Vou da contemplação ao desespero quando me dou conta de que sou aquele que se perdeu no fundo do mar.
                                                
Emmanuel Nassar 

Perdi o sonho

Ficou evidente que eu não seria correspondido. Restou caminhar pela da avenida, Gentil, quando me surpreendeu o assalto, bem no trecho em que de um lado há o cemitério da Soledade e do outro uma das farmácias mais antigas de Belém. Certeira, a serpente, prende-me o braço direito. E de pronto vem em meu socorro o braço esquerdo. Talvez ele possa impedir que a víbora lance seu veneno, até que me socorram os homens de
branco. Mas para meu desespero, eles chegam e só estão interessados em colher uma amostra do veneno. E é isso que fazem, me deixando à própria sorte.
                                              Emmanuel Nassar

Como Fiz Bandeiras

A estória de como fiz "Bandeiras”, começa em 1993, numa viagem à Alemanha. Eu acabara de montar minha participação na Bienal de Veneza e estava viajando à passeio.
Saí de Veneza, parando em Florença, Basel até Colônia, onde fui hospede do fotógrafo e editor Dietmar Schneider.
Dietmar fora um dos curadores da exposição "Brasil Já", em 89, reunindo dez brasileiros numa grande exposição de pintura, em três museus alemães.
Devo agradecer ao incansável Dietmar, a forte impressão que uma das visitas guiadas por ele, me causou, dando inicio ao longo, e as vezes tortuoso caminho que me levou à instalação "Bandeiras", quase cinco anos depois, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1998, sua primeira versão.
A exposição que tanto me impressionou, estava num museu de arte contemporânea, em Bonn, mas tinha caráter antropológico. Eram 80 bandeiras de Gana, na Africa, acompanhadas de muitos textos, que informavam sobre sua história, simbologia e procedência.
O que me impressionara nas bandeiras, naquele museu em Bonn, era a oportunidade de através delas, poder colher como num flagrante, o assombroso encontro entre as duas culturas. Com que precisão se tinha alí uma síntese das relações Europa-Africa.
Em vermelhos, pretos, amarelos e verdes.
Em desenhos de leões, girafas, flor de liz, ramos de trigo, castelos medievais, lanças, espadas, paisagem africana. Precária costura, à golpes de linha e panos coloridos.
Esboçei numerosos projetos. Com mastros em evolução,com bandeiras dobradas em caixas de acrílico transparente, em amontoado delas, em varal, em círculos, em ambientes fechados, abertos, enfim, toda espécie de maneirismos contemporâneos.
Em abril de 1997, mais de um ano antes da mostra no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o jornal O Liberal, de Belém, publicava a primeira e ampla notícia da exposição. E eu ainda falava em usar caixas de acrílico, “onde apenas um detalhe seria mostrado”, falava também em “hastear” algumas bandeiras.
O conceito, no entanto era bastante claro dois parágrafos adiante: “como se trata de uma obra de arte, não serão identificadas”. Identifica-las “significaria dar à mostra um carater antropológico e didático. A informação de que se tratam de bandeiras dos municípios paraenses, “será amplamente divulgada na forma de entrevistas”, expliquei.
Eu não dormiria por muitas e muitas noites, em dúvidas.
Dúvidas que começaram a se transformar em verdadeiros pesadelos quando começei a experimentar a dificuldade em obter as bandeiras. Essa parte da estória, é uma verdadeira aventura.
Foram quatorze meses de uma verdadeira campanha. Talvez uma campanha política. Onde não faltaram viagens pelo interior do Pará, chás de cadeira, por gabinetes de políticos, peixe frito, cerveja, boas amizades, anuncio em jornal, demorados e entusiasmados comprimentos de populares, pelas ruas de Belém.
O apoio do jornal O Liberal, foi decisivo para arrecadar as bandeiras. Publicaram anuncio criado por mim, por quase dois meses convocando a população a contribuir no trabalho de reunir as bandeiras.


Secretario do município de Monte Alegre me ligou preocupado porque havia enviado bandeira e ainda constava na lista do anuncio como ausente. Tentei tranqüiliza-lo, por conta da demora de seus intermediários chegarem a mim. Mas ele insistiu em mandar outra bandeira diretamente, “porque a população está nos pressionando.”
Num domingo, as 8 da manhã, atendi a porta de minha casa um senhor de uns 75 anos, cabelos brancos, com um embrulho nas mãos. Viajara 150kms, de Marapanim a Belém para me trazer a bandeira de seu município. Ele próprio, aos 14 anos havia desenhado a bandeira, vencendo um concurso escolar para eleger a bandeira do município.
De qualquer modo, as duvidas a respeito de como tratar as bandeiras foram se dissipando. Elas seriam mostradas como uma única obra: a grande colcha de retalhos. Justapostas, do chão ao teto, por todo o espaço da exposição. Na Sala Paulo Figueiredo, no Museu de Arte de São Paulo. O espectador seria envolvido, numa grande caixa colorida.
Eu buscava uma dissolução das individualidades simbólicas. Com o objetivo de transforma-las numa só obra, num mural pop, extraido das entranhas do Brasil, do Pará, de mim mesmo.
Difícil explicar que meu processo criativo se desenvolve num mixto de ignorancia e sintonia com as tendencias internacionais.
Não sou ingênuo a ponto de negar minha percepção, mais intuitiva que teorica, de tudo o que se passa nas páginas da Art Forum, nas feiras e Bienais internacionais por onde andei ultimamente. E sei que meu olhar desconfiado mastiga bem aquilo que se ofereçe.
Talvez tenha desenvolvido o que chamo de “ignorancia seletiva”.
Tranquilizei-me ao assumir a apropriação do material.Como um painel, uma coleção, uma colcha de retalhos.Sem discursos. E assim aconteçeu.
Bandeiras é uma instalação com 123 das 143 bandeiras de municípios do Pará. Hoje o conjunto faz parte do acervo do MAM SP por doação do artista.
Depois da exposição original em 98, parte da obra foi exposta na Bienal de SP do mesmo ano, e em diversas outras oportunidades em museus como o Museu da Pampulha em BH, CCBB Rio, CCBB Brasilia e Instituto Tomie Ohtake em SP.

Emmanuel Nassar, 2011